O Guardião

Trilha sugerida: https://www.youtube.com/watch?v=rtoPVlzySEo

A menina precisava de ajuda. Ela passava o diabo naquele lugar! Eles ficavam falando coisas bonitas, dizendo que era preciso amar e respeitar, mas o que eles faziam mesmo era matar a gente. Matava por dentro, mas matava por fora, também, às vezes. Matava mesmo.

E aí, no dia que a outra menina morreu, eu apareci pra ajudar. Não teve como salvar a menina, mas ela pelo menos conseguiu se despedir. Eu achei que tinha salvado, mas depois descobri que não salvei, não. Uma pena. Mas naquele dia ali eu vi que precisava fazer alguma coisa, se não ela iria morrer, também. E eu gosto muito dela, ela só tem eu. Eu preciso cuidar dela.

E aí, quando a outra menina morreu, o nojento de vestido quis fazer muito mais malvadeza com ela. Batia muito, bem muito mesmo. Coitada. E aí eu tentava ajudar, mordia ele, batia de volta, tirava ela de lá. Ele era forte. Mas eu mandava ela embora e apanhava no lugar dela. Dóia muito. Ele fazia outras coisas também. Eu não quero falar disso. Eu sinto muita raiva.

Ele tinha o demônio no corpo. Naquela época eu não sabia, mas eu tenho certeza que tinha. E cada vez que ele machucava ela, eu pensava em um jeito de fugir. E aí, quando eu finalmente consegui, aquele bicho esquisito me mordeu. Eu não sabia naquela época, mas depois descobri que era um vampiro. Foi por isso que doeu quando o sol nasceu.

Quando ele me mordeu eu fiquei com muita raiva e com muita fome, mas eu só conseguia pensar no nojento de vestido. E aí eu voltei pra lá e fui direto no lugar que ele dorme. Arranquei ele da cama de ceroula mesmo, e rasguei ele todo. Tem gente que diz que isso é errado, mas ele mereceu. E se eu não fizesse com ele, ele podia fazer de novo. Mas eu sei que eu morri quando o bicho-vampiro me mordeu. Eu senti que eu morri. E se eu morri e desmorri, ele também podia desmorrer de novo, então eu taquei foi fogo. Queimei tudo. Morreu muita gente e eu fiquei com pena, mas é que não tinha como avisar todo mundo. Eu fico triste com isso. Muito triste. Muito mesmo. Mas não tinha o que fazer. Não tinha mesmo. Ele precisava morrer muito bem morrido, porque aí ele nunca mais ia poder fazer aquilo de novo. Aquilo que me dá raiva. E aí eu queimei tudo e fiquei pra ver até o final. Demorou bastante e quando começou a aparecer o sol eu tive que correr no esconderijo da floresta bem rápido, porque doeu muito. Mas eu lembrava o esconderijo e eu consegui correr, então parou de doer um pouco. E aí, quando o sol foi embora de novo, eu voltei lá, e vi o resto da casa do monstro pegar fogo. Ainda estava queimando. E queimou muito, muito mesmo e foi bonito ficar vendo queimar. Na terceira noite foi que o fogo apagou. Era forte, a construção, mas eu queimei ela direito. Queimei tudo, tudinho. E depois esperei esfriar, pra ter certeza que não sobrou nada. Nada mesmo, nadinha. Aquele monstro desgraçado morreu. Eu peguei no que sobrou dele e senti ele queimando. Eu vi o que aconteceu. A menina viu um pouco também, coitada, mas eu consegui mandar ela pra bem longe. Ela ficou dormindo e é melhor que ela continue dormindo. Aí ela não precisa ver as coisas que eu preciso fazer. Assim ela não vê as coisas que eu vi.

Minha querida Sasha

Sasha, a sobrevivente

Minha querida Sasha

Trilha sugerida: https://www.youtube.com/watch?v=KHbkrHwy7I0

Os anos seguintes foram atrozes, mas Misha pouco sentiu deles. Sasha estava ao seu lado e a sentia cada vez mais próxima. E sua presença fortalecia Misha. Sasha era sorridente e adorável, apesar de um tanto desmedida com as palavras. Dizia o que pensava e isso muitas vezes as punha em confusões. Foi naquela época, mais ou menos, que começaram os apagões.

– Deixe de bobagem, Misha. Você precisa se cuidar! Eu não sou importante. – dizia Sasha constantemente.

Misha ficava muito brava quando Sasha dizia aquele tipo de coisa. Não sabia ela que era a coisa mais importante da vida de Misha? Não entendia Sasha que, naquele inferno em que vivia, Misha era seu único pedaço de paraíso..?

O tempo, para Misha, passava de uma forma estranha. Alguns dias pareciam desaparecer e, vez ou outra, ela aparecia em algum lugar que não se lembrava como havia chegado. Sasha ria das confusões de Misha e sempre dizia a ela que estava tudo bem. Elas liam, brincavam, estudavam… Aprendiam juntas diversos idiomas, novos e antigos. Sonhavam com o dia em que fariam dezoito anos, ambas, e iriam embora da Moldávia de uma vez por todas e para nunca mais voltar. Faziam aniversário juntas, pois decidiram assim. E como nenhuma das duas tinha a menor ideia de quando exatamente tinha nascido, parecia fazer sentido assim. Não sabiam, tampouco, de onde tinham vindo, mas certamente sabiam para onde queriam ir: América.

Ah, América! O novo continente… Tão grande… Tão belo… Tão, tão longe de Ştefan!

 

O incidente – Parte Dois

O Guardião

O incidente – Parte Dois

Trilha sugerida: https://www.youtube.com/watch?v=WXv31OmnKqQ

Se apanhava por tudo no Mănăstire Sfânta Teodora din Carpaţi. Por não pentear os cabelos, por não vestir a roupa apropriada aos domingos, por não comer toda a refeição, por comer rápido demais… A missa das 18h era rezada por Ștefan, do alto de seu cinismo, pregando valores de moralidade e caridade às crianças que ele mesmo molestava. E ele cobrava pontualidade, inclusive das crianças que, naquela tarde, ele molestara. E quando Mișa percebeu que Sasha não estava à sua espera, entendeu logo o que tinha acontecido: Padre Ștefan tinha escolhido ela. Sasha era a “ajudante” da vez.

Mișa correu em direção ao quartinho atrás da sacristia, onde Ștefan costumava levar suas presas. Nesse momento, pela primeira vez, sentiu que mesmo que não pudesse, precisava fazer alguma coisa. Mișa não tinha mais medo. Mișa era puro ódio. Tristeza, dor… e ódio. Ela correu com toda a velocidade que suas perninhas magricelas eram capazes de atingir. E chegou à sacristia esbaforida, já quase sem fôlego, e correu um pouco mais para alcançar a portinha no fundo da sala. Na sua imaginação, Mișa pegou um dos castiçais da sacristia, arrombou a porta com um chute e nocauteou o padre com um golpe certeiro na nuca, salvando sua amiga para sempre daquele monstro.

…A realidade, no entanto, foi muito mais cruel. Exausta, a pequena Mișa desmaiou pouco antes de atingir a porta, não conseguindo impedir a fatalidade que levaria à sua ruína e a completa destruição do convento.

Quando Mișa acordou, Sasha estava ao seu lado, em prantos, segurando suas mãos. Ela acordou assustada e abraçou a amiga fortemente, perguntando o que tinha acontecido, se enfim tinham se livrado do monstro. A garotinha ruiva respondeu triste, porém firme:

– Infelizmente não, Mishka. O monstro ainda vive. Mas estamos juntas, isso que importa. Se acalme, estamos juntas. Isso que importa!

A missa das seis ocorreu normalmente aquele dia. Ștefan impávido, proferia os versículos em um Latim impecável. Sasha e Mișa não estavam lá. Mișa dormiu com fome, ao lado de Sasha, e com o traseiro dolorido de tanto apanhar. Sentia-se aliviada, no entanto… Por algum motivo motivo, Sasha não apanhara. Deus deveria existir, afinal.

 

O incidente – Parte Um

Minha querida Sasha

O incidente – Parte Um

Trilha sugerida: https://www.youtube.com/watch?v=Dv6Th7kJ64Q

Quando tinham oito anos, houve o incidente. Mișa estava procurando por Sasha, pois tinha conseguido roubar um pouco de sobremesa do armário das freiras. Como estava lá desde sempre, Mișa conhecia todos os segredos do orfanato e já tinha decorado o horário que a irmã Andrada saía para suas orações, deixando a cozinha desassistida. Às vezes irmã Sabina ficava tomando conta do armário, mas acontecia vez ou outra de ela não poder ficar. E nessas oportunidades, aproveitava para roubar um pouco de fursecuri (biscoitos) e, uma vez ao ano, os restos de pască da Sexta-Feira Santa. Tinha havido visita do Bispo e serviu-se mais comida do que em dois meses inteiros se via naquele lugar. E tinha cozonac, a guloseima favorita das meninas.

Assim que irmã Andrada saiu, Mișa entrou rapidamente na cozinha e escondeu o pão doce embaixo da longa camisa, saindo na ponta dos pés, ágil como um relâmpago, em direção às escuras escadarias da torre do sino. O cozonac já estava endurecido e farelento e Mișa o levava com cuidado enrolado na roupa, enquanto seguia espreitando pelas sombras da antiga construção ao encontro de Sasha, que já deveria estar esperando no esconderijo. Poderiam ficar ali até pouco antes de cair o Sol, quando Nicolae despertava do cochilo vespertino e vinha caminhando lentamente para badalar o sino e convocar a todos para a missa das seis. Precisavam sair antes disso e estar prontas e de banho tomado, pois quem não estivesse impecável na hora da missa, iria dormir sem tomar sopa. E apanhava. Oh, como apanhava!

A Pequena Misha

O incidente – Parte Dois

A Pequena Misha

Trilha sugerida: https://www.youtube.com/watch?v=bqM3SsUZx5o

Misha. Ou na grafia romena, Mișa. O apelido lhe fora dado por Sasha, sua melhor amiga no orfanato. Mihaela e Alexandra. Unha e carne. Inseparáveis.

A amizade surgira da dor, do amparo que uma oferecia à outra nos primeiros anos da infância de cada uma, naquele frio orfanato entre o que hoje conhecemos como Moldávia, Ucrânia e Romênia. Às vezes, pouco após o almoço, fugiam juntas para observar o movimento das águas do Rio Prut. Escalavam a pequena mureta e passavam por um furo na comprida cerca que rodeava o pátio da igreja, cujos fundos faziam as vezes de orfanato.

Crianças! De cinco ou seis anos, apenas.

O Pe. Nicolae costumava cochilar após a refeição e o Pe. Ștefan recolhia-se “aos seus afazeres”, como costumava dizer. Às vezes, era Mișa a escolhida para “acompanhá-lo”. às vezes, Alexandra. Mas nunca juntas. Pe. Ștefan podia ser pérfido, mas não era burro, e jamais cometeria o mesmo erro duas vezes. Quando estavam juntas, elas se fortaleciam e, por mais que todos fizessem vista grossa, ficava difícil justificar as mordidas e arranhões na hora da missa.

Crianças! De cinco ou seis anos, apenas.

 

Sasha e Misha

O incidente – Parte Um

Sasha e Misha

Trilha sugerida: https://www.youtube.com/watch?v=kyzZ_TlnyHQ

Mișa sempre estivera lá. Quando Sasha chegou, elas tinham praticamente a mesma idade, mas Mișa tinha sido deixada na roda dos enjeitados ainda recém-nascida. Ninguém sabia nada de seus pais, de sua origem, de seus antepassados ou de sua história. Levou o sobrenome de Popescu: a filha do padre. Mais uma, entre centenas ao longo de toda a Moldávia. Diziam que ela tinha traços da Valáquia. Diziam que seus pais foram assassinados por turcos. Diziam que ela mesma era turca. Diziam muitas coisas, mas a verdade é que nada se sabia sobre a pequena Mișa. Com a pele ligeiramente acastanhada e os cabelos negros encaracolados, poderia ter ascendência de qualquer lugar. Inclusive dali.

E enquanto Mișa era tímida e introspectiva, Sasha era sorridente, simpática e eloquente. Juntas, faziam planos mirabolantes, onde Mișa elaborava os mais complexos estratagemas e Sasha a ensinava a considerar o fator social:

– Você tem que pensar como eles pensam, Misha. Tem que entrar na cabeça deles e antever o que eles vão fazer!

Mas isto quando já eram maiores. Aos nove, dez, talvez onze anos. No começo, era quase um “gugu-dadá”. Ou “guguv-dadavski”, já que Sasha ensinara Russo a Mișa desde muito cedo. E Mișa ajudou Sasha a entender o Romeno e o Latim, e as duas se divertiam escondidas na biblioteca, enquanto as outras crianças corriam no pátio. O livro favorito de Mișa era Don Quijote, um velho panfleto em Espanhol que encontrara abandonado por lá. Liam, liam, liam… E em algum momento, Sasha se cansava:

– Vamos tomar um sol, Misha! Precisamos respirar…

E saíam as duas, Sasha na frente e Mișa atrás, sempre fiel escudeira, em busca de um lugar sossegado no pátio que fosse longe dos olhos dos terríveis reverendos. Era curto, o tempo que tinham livres para brincar. Em geral, era por algum descuido, e durava apenas o tempo do cochilo vespertino do reverendo Nicolae.

Haviam também algumas freiras, mas elas passavam o dia cuidando da horta, do pasto, da cozinha e das funções da igreja e do orfanato, lavando grandes lençóis no rio e mantendo toda aquela estrutura de pé. Eram poucas, as irmãs, e o serviço era muito.

 

Sasha, a sobrevivente

A Pequena Misha

Sasha, a sobrevivente

Trilha sugerida: https://www.youtube.com/watch?v=jZLHsqOXFkc

Alexandra era uma garotinha ruiva, filha de desertores russos, fugidos da Grande Guerra do Norte. Quando ela tinha pouco mais de dois anos e já estavam próximos à fronteira, os pais de Alexandra foram capturados e seu destino jamais fora conhecido. A última imagem que Sasha se lembrava de seus pais era sua mãe, Irina, sendo arrastada pelos longos cabelos ruivos por homens de farda, enquanto os olhos azuis do seu pai perdiam o brilho entre as dolorosas lágrimas, fruto do espancamento e do pavor de ver sua amada levada para longe de si.

A pequena observava a cena por entre as frestas da madeira, fazendo força para conter o choro e conseguir respirar. Tinha a boca tapada pela mão da velha senhora, cujo pranto corria em absoluto silêncio. O barril se afastava da Ucrânia em direção à Romênia. Sasha estava a salvo.

Sasha e Misha